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DESVIO


Fomos assaltados em Bruxelas, no domingo.

Depois de um bom almoço em família, e de uma tarde super divertida, chegámos à autocaravana e o vidro triangular da porta do condutor estava religiosamente bem partido. Um circulo quase perfeito, do tamanho ideal de um punho, permitindo que a mão de um dos artistas entrasse, na perfeição, chegando ao manípulo.

Depois da porta aberta, entraram e subtraíram alguns objetos, essencialmente dos miúdos, e a coluna de som do pai: aquela que animava as viagens e as manhãs, aquela que repetia as 3 músicas preferidas da playlist do Ricardo, deixando os vizinhos caravanistas a cantarolá-las depois de um tempo.

Foram levadas também as imagens dos últimos meses. As imagens que me prendem as recordações e que, ao fim de cada ano, imprimo num álbum. As imagens que estavam num pequeno, pequeníssimo, cartão de memória.

É das imagens que sinto mais falta.

Os miúdos ficaram impressionados. Mexeram nas nossas coisas! Levaram as coisas deles. Coisas que desejaram durante meses (até anos) e que lutaram para as ter.

"Espero que tenham levado para vender, porque precisam de comer", suspirava o Lee, na inocente tentativa de encontrar uma justificação, um perdão qualquer.

Foi por isso que o GPS nos levou para Floreffe, perto de Namur, ainda na Bélgica.

Estacionámos, sem vidro, num parque de autocaravanas, em frente a um rio. O tempo parece sobrar-nos enquanto esperamos pelo vidro, que devia ter chegado há 2 dias.

Não conseguimos avançar na estrada, mas os dias calmos, permitem avançar nos estudos.

Tentamos ver a beleza do local, assim que a névoa do último acontecimento se começa a dissipar.

Há um relvado imenso na outra margem. Há campos de futebol e de rugby, e praticam tiro com arco.

Os miúdos da escola descem às margens para correr com o professor de educação física. Só os miúdos. Já todos nos perguntámos onde estariam as miúdas.

Por trás, uma abadia. Enorme, linda. Resisto a querer visitá-la. É como se aceitasse que terei de cá ficar mais tempo.

Nós não escolhemos este lugar!

O senhor do stand diz que as encomendas ainda não chegaram.

Amanhã é sexta-feira.

Segunda é feriado.

Os dias manter-se-ão longos e calmos.

Confesso, o lugar até é bonito.

E joaninhas amarelas pousam-me na camisola.

Aqui também se ouvem corvos, como em Paris. Ainda não vos contei sobre Paris.

Vim com um sabor agridoce. Talvez não me apeteça falar, ainda.

Mas posso acrescentar que os momentos doces foram as nossas pessoas, que nos visitaram.

Foram os passeios à beira-Sena, foi a curiosidade dos miúdos no Louvre, e o facto de me ter sabido a pouco, enquanto a eles lhes encheu as medidas.

Doce, foi a entrevista em Notre-Dame.

Foi o chocolate quente, feito à moda antiga, em Montmartre, que nos aqueceu do frio enquanto observávamos a cidade, aos nossos pés.

Foram bons momentos... foram momentos mesmo bons!

O resto, ainda estou a digerir. Estou a digerir a falta de simpatia de alguns (uns tantos) parisienses.

Estou a digerir o mau cheiro e a falta de limpeza dos wc.

(Valeu-nos o saco de pano cru, da fanecas, com o kit de sobrevivência: Sabonete, papel higiénico e detergente para limpar a sanita.)

Estou a digerir a brutalidade com que abriam e batiam nas portas das cabines do wc, e o facto de um senhor ter forçado a minha porta, cujo trinco fechava mal, e de me ter encarado sentada na sanita. (as casas de banho e os duches eram mistos)

Estou a digerir a tempestade e o vento que nos tirou o sono numa das noites, chocalhando a nossa casa.

Entretanto, penso na lei do equilíbrio.

Só sabemos o que é doce depois de provar o amargo ou o ácido.

Só percebemos que outros caminhos podem ser válidos, quando somos obrigados a desviar-nos da rota desejada.

Anoiteceu enquanto escrevia, e o céu, em Floreffe, está lindo.

As luzinhas, que decoram o exterior da autocaravana, acenderam.

Amanhã deixarei de resistir.

Há uma abadia enorme, linda, por trás de nós. Acho que a vamos ver.










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